Se o que vejo são formas, como é que se formam as figuras?
Se o que espero é o real, de onde vem esta riqueza tonal?
Ao representar o que observa, seja uma pessoa, um objeto ou uma paisagem, o pintor não está simplesmente transportando o real para outro meio, ele está sim, interpretando este real através de sua subjetividade. Está, basicamente, criando uma abstração poética da realidade.
Seria então a pintura abstrata duas vezes mais dotada de poesia do que a figurativa, na medida em que cria uma metáfora de formas e cores em si mesma, estabelecendo um elo nada óbvio entre a sensibilidade do artista e a do observador? Ou estaria a pintura figurativa mais apta a transmitir poesia, por ser mais próxima do homem?
Na verdade, estas duas linguagens não se podem dissociar. Elas estão ligadas ao percebermos padrões abstratos em obras figurativas e ao distinguirmos figuras reais em obras abstratas. Elas se invadem, permeiam-se, entrelaçam-se nos caminhos daqueles que fazem e amam a Arte.
Giovanni Batista Piranesi foi um obstinado. Nascido em Veneza em 1720, aproximou-se da arquitetura no ateliê de seu tio, o arquiteto Matteo Luchesi, onde aprendeu o desenho arquitetônico e assimilou aspectos concretos das técnicas de construção. A partir de então foi de tal modo arrebatado por esta arte que chegou certa ocasião a afirmar: “Tenho necessidade de produzir grandes ideias e creio que, se me encomendassem a planta de um novo universo, teria a ousadia de levá-la a cabo”.
Em 1740, aos vinte anos de idade, Piranesi foi para Roma. Já um exímio desenhista, passou a estudar a técnica da água forte (gravura em metal), muito utilizada pelos artistas do séc. XVIII. Salvo por uma breve ausência, quando voltou para Veneza por motivos financeiros, o artista nunca mais deixou Roma. Dedicou-se então a representar, com precisão impressionante, os traços da arquitetura daquela cidade, que se tornou o objeto principal da maioria de seus trabalhos.
As gravuras eram, à época de Piranesi, uma demanda de mercado, sendo consumidas por turistas ávidos por lembranças de pontos da cidade que visitavam. Porém o artista transformou esta forma de expressão tradicional, conferindo uma visão inteiramente nova aos temas usuais. Seus trabalhos se impunham por uma perspectiva inovadora e pela ousadia no tratamento espacial.
As obras descritivas de Piranesi sobre Roma estão em duas categorias que se entrecruzam. Por um lado, os monumentos novos ou preservados com rica representação de detalhes arquitetônicos. Por outro, as ruínas de séculos de idade, também minuciosamente representadas, com suas paredes e tetos quebrados possibilitando a invasão da luz. Como coloca Marguerite Yourcenar em seu belo ensaio The Dark Brain of Piranesi: “... templos e basílicas parecem virados do avesso pelas depredações do tempo e do homem, de modo que seu interior tenha se tornado uma espécie de exterior, totalmente invadido pelo espaço como um navio invadido pela água”.
No entanto, foi na série em água-forte denominada Carceri D’invenzioni, que Piranesi transpôs os elementos romanos para a esfera do irracional. O primeiro estado foi impresso a partir de 14 chapas produzidas entre 1743 e 1745, quando o artista tinha pouco mais de vinte anos de idade. Em 1760, quinze anos depois da primeira edição, Piranesi voltou ao tema com o segundo estado das 14 chapas e o primeiro estado de outras 2 chapas, compondo assim uma série de 16 chapas que ele chamou de “Carceri D’Invenzioni de G. Battista Piranesi Archit Vene”. Este título evidencia novamente a sua paixão pela arquitetura e parece manifestar uma frustração por não ser reconhecido como um arquiteto. O que ocorreu somente uma vez, perto do fim de sua vida, quando recebeu a incumbência de seu único trabalho arquitetônico importante: o projeto de restauração da Igreja Santa Maria Aventina (1764-1765).
Talvez por representar uma obsessão, a série “Carceri D’invenzioni” parece um sonho do qual não se consegue escapar. Nela vivemos a claustrofobia combinada à agorafobia, num espaço infinito e, por isto mesmo, sem saída. O espaço é, na verdade, o protagonista do sonho de Piranesi, onde o confinamento se opõe à vastidão, a precisão à quebra de leis da física, a exatidão técnica à alucinação e o incontido se manifesta em minúcias.
Instrumentos de tortura que parecem extensões dos corpos torturados, seres supliciados que nem sequer tentam escapar, figuras esculpidas na pedra que trazem o mesmo semblante degradado das figuras humanas, personagens grotescos em total naturalidade; tudo remete ao temor de um pesadelo interminável. A perspectiva surpreendente nos coloca em um mundo impossível e, de certa forma, verossímil, pois nada nos sonhos é absurdo. Experimentamos também um profundo sentimento de solidão; torturados e torturadores que povoam o cenário dão a impressão de estarem totalmente alheios àquilo que os cerca. Tal solidão é acentuada pela entrada da luz solar em meio às sombras, que, em vez de aquecer e trazer esperança, prenuncia a grande distância do mundo real e da liberdade.
O medo e a opressão neste ambiente sonial são ainda acentuados pela completa ausência de elementos naturais. Não identificamos nenhum tipo de vegetação. Os constituintes do cenário são a pedra, o ferro e a madeira. Os seres presentes no ambiente não manifestam vida, mas permanência. Apenas a insanidade humana parece viver nos Cárceres de Piranesi. Apenas o espaço parece atuar nesta realidade fantástica de modo a capturar o olho do observador.
É assim que a obsessão e a frustração de Piranesi tornam-se a nossa fascinação. Não conseguimos parar de olhar. A cada nova observação, descobrimos detalhes desta intrigante obra. A cada novo ângulo descoberto nos prendemos mais à paixão deste gravador que se intitula arquiteto e aos Cárceres imaginários do sonho que ele nos criou.
Veja algumas imagens das gravuras de Piranesi: